Mestre Alcachofra: ícone da Capoeira no Brasil
“Eita! quanta coisa
tu tens pra contar…
não conta mais nada,
pra eu não chorar”.
(Solano Trindade)
*Por Márcio Amêndola de Oliveira
José Nunes de Carvalho, mais conhecido como Mestre Alcachofra tem 53 anos, completados na sexta-feira, 15 de maio. De infância humilde, nasceu em Salvador, na Bahia, daí seu talento de ‘sangue’ para sua grande arte, a Capoeira. Menino, foi criado nas ruas do Pelourinho, onde meninos pobres brincavam e se espalhavam à cata de turistas, pra ‘explicar tudo’ sobre as velhas igrejas coloniais baianas da primeira Capital do Brasil.
Pau-de-Arara
Com 11 anos de idade, em 1967 chegou sozinho a São Paulo, acompanhado apenas de um primo, num ‘pau-de-arara’ (um caminhão com bancos de madeira e proteção de lona), nos mesmos moldes da migração do presidente Lula, vindo de Garanhuns para São Paulo no final dos anos 50. Por aqui, já estavam seus pais, Maria Nunes de Carvalho e João Alves de Carvalho, que moravam num barraco da favela do Vergueiro, na Vila Mariana e receberam o filho com a alegria e o ‘desaperto’ no coração, por conseguirem juntar novamente a família.
Sacolas das Madames
Ainda aos 11 anos, Alcachofra começou a trabalhar fazendo carretos em feiras livres do bairro. O trabalho consistia em carregar mercadorias para as mulheres que faziam compras na feira. O menino franzino, muito magro, carregava as pesadas sacolas das madames em troca de alguns ‘tostões’. Mas não ficava com todo o dinheiro. Entregava para sua mãe, além de um carrinho cheio de verduras, que conseguia no final da feira. O carrinho foi construído pelo próprio Alcachofra, de um caixote de bacalhau e rodinhas de rolemã (rolamentos usados de caminhão). O pequeno José (que ainda não se chamava Alcachofra) comprava seus próprios cadernos, lápis e borrachas para estudar na Escola Estadual Marechal Rondon, existente até hoje no bairro de Vila Mariana. De lá, saiu com o diploma do primário. Seus pais tiveram mais um filho, Jorge, no final dos anos 60. Depois, foi ganhando mais irmãos: Celso, Marli, Dulcinéia e Rubens. Com exceção de Celso, já falecido, todos os irmãos e os pais de Alcachofra são vivos, todos residentes em Embu atualmente. Aos 14 anos, José Nunes consegue seu primeiro emprego de carteira assinada, como pacoteiro do antigo Supermercado Peg-Pag (comprado pelo Grupo Pão de Açúcar), onde trabalhou por 3 anos, chegando a encarregado de portaria.
Foto: Divulgação
Mestre Alcachofra e Grupo durante apresentação no dia 1º de Maio 78
Barraco demolido pelo Exército
Aos 15 anos, em 1971, o jovem José Nunes e toda a sua família passaram por uma grande tristeza. O barraco onde morava na Vila Mariana, bem como toda a sua favela, foram demolidos pelo comando do Exército, sem aviso prévio, sob a alegação de ser um terreno particular invadido. O proprietário, bem relacionado com a ditadura militar, conseguiu a ‘reintegração de posse’ à força, sob a alegação de que a Favela do Vergueiro era dominada por ladrões. De fato, José se lembra que os moradores honestos e trabalhadores passavam grandes dificuldades nos constantes confrontos entre os bandidos e a polícia. “Nosso barraco tinha a grossura de cinco tábuas, pra tentar barrar as balas dos tiroteios”, lembra Alcachofra.
Chegada a Embu
E foi exatamente em 1971 que toda a família de José Nunes, sem mais ter onde morar em São Paulo, decidiu desembarcar na periferia de Embu, no Jardim Santa Emília. O pai de José conseguiu comprar uma pequena casa de tijolinhos de barro e telhas, pertencentes a um tal de senhor Augusto, proprietário de dezenas de imóveis humildes naquele bairro. O Jardim Santa Emília não tinha praticamente nada. “Era uma capoeira só, não tinha comércio, igreja, era só mato e poeira. Quando chovia, o único ônibus que servia o bairro na linha Jardim Santo Eduardo a Jd. Maria Sampaio (São Paulo) tinha que trafegar com correntes amarradas nas rodas, pra não patinar na lama”, recorda. Estudou na escola do bairro e seguiu lutando juntamente com sua família.
Nasce o ‘Mestre Alcachofra’
E o jovem José Nunes, já com 17 anos, começa a se transformar no ‘Mestre Alcachofra’. Entra em contato com a Capoeira, através de uma academia, na Rua Butantã, em São Paulo. Lá, aprendeu seus primeiros passos na arte vinda da África, mas não parou por ali. Seguiu estudando, fez cursos em várias academias, participou de cursos na Federação Paulista de Capoeira, de congressos em São Paulo, na Bahia, Paraná, Rio de Janeiro, Minas Gerais, entre outros. Em 1978, aos 22 anos tornou-se Mestre em Capoeira e passou a dar aulas e abriu sua própria Academia, a Associação de Capoeira Filho de Ogum Beira-Mar. Seu nome, ‘Mestre Alcachofra’ foi um apelido que recebeu de um de seus professores. Pioneira, sua academia era a única da Região Oeste da Grande São Paulo, além da instalada no bairro de Pinheiros.
Origens Africanas
A Capoeira é uma dança nascida de uma arte marcial (luta) inventada pelos antigos escravos africanos, que fugiam do cativeiro imposto pelos senhores de engenho, para as ‘capoeiras’, matas baixas do sertão, onde treinavam a auto-defesa corporal, já que não tinham armas para se defender. Da luta, com o tempo, nasceu a dança, que acabou se desvinculando da violência que a gerou.
Em 1980, o grupo do Mestre Alcachofra participou da inauguração do Estádio Municipal Hermínio Espósito (que na época chamava-se Joaquim Mathias de Moraes). A apresentação dos ‘Capoeiras’ de Embu foi aplaudida pelas milhares de pessoas presentes à festa.
Projeto ‘Capoeira nas Escolas’
Em 1983, no governo do prefeito Nivaldo Orlandi, Mestre Alcachofra passou a integrar o grupo de professores na área de Esportes, e a Capoeira foi incluída no currículo das escolas Municipais. Milhares de crianças de Embu tiveram contato pela primeira vez com este esporte genuinamente brasileiro. Seu trabalho na prefeitura permaneceu até 1988, quando foi interrompido por sua demissão no governo Quinzinho (1989-92). Neste período Alcachofra sobreviveu de sua academia e de um emprego em São Paulo.
Foto: Divulgação
Mestre Alcachofra que acaba de completar 53 anos
No governo Puccini (1993 a 1996), Mestre Alcachofra voltou a ministrar aulas para as crianças da rede municipal de ensino, atingindo 3.600 crianças de 45 escolas. Nesta época, foi aprovada a Lei que autorizou a realização do Festival Brasileiro de Capoeira, coordenado por Mestre Alcachofra em Embu, realizado anualmente até 1996. A Rede Globo de Televisão interessou-se pelo ‘Projeto Capoeira nas Escolas’, idealizado por Alcachofra e que atraia tantas crianças. Entre 1994 e 1996 integrou o Conselho Municipal de Turismo e Cultura de Embu.
O trabalho em Embu foi novamente interrompido em 1997 pela demissão de Mestre Alcachofra pelo prefeito Oscar Yazbek, que também aboliu o Projeto Capoeira nas Escolas. A alternativa foi trabalhar fora da cidade. Mestre Alcachofra levou seu trabalho para Itapecerica e Taboão da Serra, até 2004, quando o premiado professor Mestre Alcachofra voltou a ser apenas José Nunes de Carvalho. Sem condições financeiras para reabrir uma academia, José passou a viver de empregos temporários, entre os quais um de Segurança Patrimonial, na Avenida Angélica, em São Paulo.
O grande sonho
O grande sonho de José Nunes é voltar a ser o Mestre Alcachofra, professor e difusor da cultura afro-brasileira da Capoeira, a grande dança de resistência dos antigos escravos, e o primeiro esporte verdadeiramente brasileiro. Ao completar 53 anos, o mestre tem um oceano de experiência e um mundo a reconquistar. Basta que homens públicos (ou não) sensatos saibam revalorizar um profissional e um esporte que tem a cara do Brasil e dos Brasileiros. O menino franzino que chegou da Bahia num pau-de-arara há mais de 40 anos ainda tem muita história pra contar.
________________________________________________________________________
*Márcio Amêndola de Oliveira é Assessor de Comunicação da Câmara de Embu e graduando em História pela USP.